Notório saber é um atentado ao ensino público brasileiro
Por Ana Archangelo
O “notório saber” é medida de caráter
excepcional para reconhecimento público de conhecimento e erudição. Em sua
origem, portanto, não consiste em atalho a qualquer processo de formação. O PL
839/2016, contudo, valendo-se da Medida Provisória 746/2016 , subverte por
completo seu sentido original. Propõe a certificação de conhecimento para
professores da educação básica, em qualquer área do conhecimento, e para
qualquer nível de ensino. Sua finalidade precípua é reduzir o déficit de
professores da rede estadual de ensino, ampliando o contingente de
profissionais “habilitados” a assumir a árdua e relevante tarefa de formar
nossos jovens.
O Artigo 1º do PL prevê que a
certificação pode ser feita por dois caminhos. No Inciso II, a certificação é
conferida por uma banca de “professores notáveis” da rede estadual, escolhida
pelo Dirigente de Ensino de cada região. Não fosse inviável pela ordem de
grandeza dos números relativos ao sistema de ensino paulista, poderíamos dizer
que tal inciso guarda o mérito de alguma elegância.
Viável, apenas o previsto no
problemático Inciso I do Artigo 1º. Nele prevê-se que a certificação será feita
por Instituições de Ensino Superior. O Projeto de Lei, contudo, silencia sobre
os critérios para concedê-la. A que serve esse silêncio? Como certificar o
“notório saber”? Mediante prova de conhecimentos específicos? Ou prova
didática, que comprove competência pedagógica? Prova de títulos? Por meio de
quais critérios o postulante deverá ser avaliado? Mais ainda, qual seria o
interesse de uma Instituição de Ensino Superior em fornecer o certificado de
“notório saber” àqueles que, em tese, seriam seus potenciais estudantes?

A formação de professores oferecida
por instituições reconhecidas por seu mérito acadêmico e científico exige que
os alunos não apenas dominem os conteúdos específicos de uma área de
conhecimento, mas transitem entre conhecimentos de Psicologia, Filosofia e
História, Ciências Sociais, Didática, Metodologia de Ensino, Políticas
Educacionais e, fundamentalmente, tenham o contato qualificado, supervisionado
e problematizador com a realidade educacional, com a sala de aula, com a
prática pedagógica. Isso, inclusive, é o que exige a Deliberação 111/2012
(126/2014), editada pelo Conselho Estadual de Educação de São Paulo. Em uma
formação sólida, a prática não está desarticulada da compreensão profunda dos
processos históricos, sociais, culturais, psicológicos constitutivos dos
sujeitos-aprendizes, das instituições e da sociedade.
Nossa história recente tem nos
mostrado que quando a educação é compreendida como privilégio para poucos ou
como mercadoria de baixa qualidade para muitos, e não como direito social, as
distorções são inúmeras, e os danos, sérios. A adoção do “notório saber” para a
Educação Básica é nociva a curto e a médio prazos e, portanto, desaconselhável.
A curto prazo e a um só tempo, coloca em sala de aula professores sem a
qualificação adequada e ataca os cursos de formação de professores
comprometidos com a melhoria da qualidade da educação básica. Esses cursos
concorrerão com a formação técnica e a possibilidade posterior de certificação
de notório saber para a docência. Nesse cenário, a quem as licenciaturas seriam
atrativas?
A médio prazo, isenta o Estado de sua
responsabilidade com as políticas de formação de professores e de valorização
da carreira docente. O Estado se desincumbe da responsabilidade pelo déficit de
professores, que é real, em especial em algumas áreas do conhecimento; e que
decorre da negligência para com a educação pública, em alguns casos, e de
inúmeras medidas tomadas para desvalorizar a carreira docente, em outros. Mais
uma vez assistimos a uma dinâmica que lança mão da negação dos reais
determinantes do problema que o Projeto de Lei diz pretender solucionar, em
prol de medidas paliativas, por meio das quais se expressa um profundo descaso
para com a formação de professores e com a educação das crianças e jovens em
nosso país.
Ana Archangelo é professora da
Faculdade de Educação da Unicamp e Presidente da Comissão Permanente de
Formação de Professores da Unicamp (CPFP)
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